Indígenas Waiwai em 1971 (Foto: Yves Billon / ISA)

Calha Norte: gestão territorial no Planalto das Guianas

Por Nathália Clark

A região conhecida como Calha Norte Oriental se situa ao norte dos rios Solimões e Amazonas, entre o Estado do Amapá e norte do Pará. Fronteira com o Suriname, Guiana e Guiana Francesa, essa região também é conhecida como Planalto das Guianas, onde se localiza um dos maiores mosaicos de áreas protegidas do mundo. Das regiões mais preservadas da Amazônia, ela é também uma das menos conhecidas do ponto de vista da diversidade sociocultural e linguística dos povos indígenas que a habitam.

Nas últimas décadas, esses povos vêm ganhando, por parte do Estado brasileiro, o reconhecimento e a regularização das terras por eles ocupadas tradicionalmente. Ainda assim, projetos de aproveitamento minerário e hidrelétrico, bem como ações de proselitismo religioso, continuam a ameaçar seus territórios e sua organização sociocultural, além de colocar em risco a integridade física dos grupos que se encontram em isolamento voluntário.

“Apesar de ainda não ser uma área muito assediada pelos projetos de desenvolvimento nacional, sabemos que ela já consta nos planos de expansão econômica do governo. Na década de 1970 foram iniciados dois projetos que, se levados a cabo, teriam sido uma catástrofe: as obras de implantação da BR-210, mais conhecida como Perimetral Norte, e os estudos para a construção da Hidrelétrica de Cachoeira Porteira, no rio Trombetas”, afirma Ruben Caixeta, antropólogo que atua na região há mais de duas décadas.

Projetado durante o regime militar como parte do Plano de Integração Nacional para atender aos estados do Amazonas, Pará, Amapá e Roraima, o traçado da rodovia cruzava diversos territórios de povos não contatados à época, inclusive grande extensão da porção sudoeste do que hoje compõe a Terra Indígena Yanomami. Já a usina hidrelétrica afetaria diretamente diversos povos indígenas e uma população de quase 10 mil quilombolas que habitam comunidades locais como a de Cachoeira Porteira.

Em 2014, a construção de barragens voltou a preocupar os povos da bacia do rio Trombetas. Em fevereiro, a Empresa de Pesquisa Energética (EPE), órgão do Ministério de Minas e Energia, iniciou um novo inventário hidrelétrico que abrange o curso principal do rio Trombetas e o baixo curso dos rios Mapuera e Cachorro, em trechos antes localizados nas Florestas Estaduais de Trombetas e Faro, no município de Oriximiná (PA). Com o recente reconhecimento da Terra Indígena Kaxuyana-Tunayana, estes trechos agora se encontram dentro da área delimitada para a mesma.

Imagem aérea de Cachoeira-Porteira, na bacia do rio Trombetas (Foto: Iepé).

Imagem aérea de Cachoeira-Porteira, na bacia do rio Trombetas (Foto: Luísa Girardi/Iepé).

Além desses projetos, também existe na região um grande interesse minerário. A atividade de exploração mineral ocorre por duas frentes. Uma, legalizada e executada em escala nacional e internacional, é representada em grande parte pela Mineração Rio do Norte, a maior produtora de bauxita do Brasil, que atua no rio Trombetas. A outra, realizada em menor escala, se dá por meio da ação ilegal de garimpeiros, que invadem as terras indígenas em busca de minério. “Em suas andanças pelo território, os índios de vez em quando descobrem locais de garimpo, reativamento de pistas antigas, etc. Como a floresta é muito grande e as áreas muito distantes, muitas vezes nós nem sabemos o que está acontecendo de verdade lá para dentro”, comenta Caixeta.

A presença da Funai

É nesse contexto que atua a Frente de Proteção Etnoambiental Cuminapanema (FPEC), vinculada à Coordenação-geral de Índios Isolados e Recém-contatados da Fundação Nacional do Índio (CGIIRC/Funai). Criada em 1990, logo após o contato com os Zo’é, na região do rio Cuminapanema, noroeste do Estado do Pará, a Frente teve seu trabalho muito focado junto a este povo até o ano de 2011. Antes dela, a última ação de localização de índios isolados que a Funai realizou foi a expedição do sertanista Sebastião Amâncio, em 1982. Dessa forma, criou-se, ao longo de quase três décadas, uma lacuna de informações com relação aos povos isolados na região da Calha Norte.

Indígenas do povo Zo'é (Foto: Acervo CGIIRC/Funai).

Indígenas do povo Zo’é (Foto: Acervo CGIIRC/Funai).

Foi a partir da publicação da Portaria nº 1816/PRES da Funai, de dezembro de 2011, que foram oficialmente incluídas na área de jurisdição da FPEC cinco referências de povos isolados. Trabalhos mais recentes de localização e qualificação de informações sobre a presença de grupos em isolamento voluntário, entretanto, apontam para a possibilidade de que esse número seja ainda maior, em torno de 10 referências.

Hoje, as ações da FPEC abrangem uma vasta extensão territorial que vai da calha do rio Jatapu, no Amazonas, até as cabeceiras dos rios Oiapoque e Amapari, no Amapá, incluindo ainda as fronteiras com a Guiana, Guiana Francesa e o Suriname. Sua área de atuação compreende as Terras Indígenas Zo’é, Rio Paru D’Este, Parque do Tumucumaque, Nhamundá-Mapuera, Trombetas-Mapuera, Waiãpi e Kaxuyana-Tunayana, esta última recentemente delimitada pela Funai.

Além das terras indígenas, a área de atuação da FPEC também abrange unidades de conservação estaduais e federais, tais como a Estação Ecológica (Esec) Grão Pará, a Floresta Estadual (Flota) Paru, a Reserva Biológica (Rebio) Maicuru e o Parque Nacional (Parna) Montanhas do Tumucumaque, já que nelas existem registros da presença de isolados.

Mapa da região com as terras indígenas foco de atuação do CTI.

Mapa da região com as terras indígenas foco de atuação do CTI.

Histórico colonial

Os primeiros estudos produzidos sobre os povos da região revelaram uma distribuição dos grupos familiares em pequenas aldeias espalhadas pela floresta. Contudo, etnografias posteriores evidenciaram que, a despeito dessa dispersão, existia ali uma complexa rede de relações que remonta ao período pré-colombiano e que vigora até hoje. Na década de 1950, com a chegada das missões católicas e protestantes vindas de outras partes do Brasil, do Suriname e das Guianas, houve uma reconfiguração da territorialidade desses povos.

Nesse momento, eles foram incentivados a se agruparem em grandes aldeamentos missionários, como o Canashen, na Guiana, onde se concentrou a maioria dos povos que hoje formam os Waiwai, e a Missão Tiriyó, no lado brasileiro, iniciada a convite da Força Aérea Brasileira (FAB), em 1960. Alguns grupos, subgrupos ou até mesmo famílias, entretanto, recusaram o deslocamento para tais aldeamentos. “Na minha interpretação, é a partir daí que começa a surgir nessa região o contraste entre os povos ‘aldeados’, ou em contato com o Estado e com as missões, e os povos ‘isolados’”, opina Fábio Ribeiro, coordenador da FPEC desde 2011.

A ação proselitista junto aos indígenas, segundo Fábio, ainda é muito forte. “Vemos o fundamentalismo religioso como uma grande ameaça ao território dos isolados. Até hoje os missionários têm uma política de incentivar os povos Hixkaryana, Waiwai, Kaxuyana, Wayana e Tiriyó a ir atrás dos povos isolados e dos Zo’é, recém-contatados, sempre com o discurso de que eles têm que ser evangelizados, pois estão sofrendo, no mato. E eles reproduzem esse argumento, nos perguntam por que a Funai deixou de fazer o contato com esses povos, ainda muito focados na política adotada no tempo das ‘frentes de atração’”, comenta.

Ruben Caixeta relata que, por influência das missões, os índios Waiwai fizeram várias expedições para encontrar os grupos isolados, e se tornaram conhecidos na região como um povo “vocacionado” para essa função. “Tratam como se fosse do ethos Waiwai encontrar e pacificar os isolados. A Funai, inclusive, contou com a expertise deles para várias ações de localização. Mas é muito difícil desligar essa ‘vocação’ dos Waiwai do objetivo missionário. É preciso transformar essa lógica das expedições de contato dos indígenas, ainda muito vinculada à questão religiosa”, afirma.

Segundo o antropólogo, esses intercâmbios e visitas entre aldeias existem muito antes da presença dos missionários. “No começo do século XX, foi através dessas expedições que esses grupos começaram a reatar relações que tinham perdido por conta da colonização. Os índios têm seu protagonismo na relação com os isolados. Então, é preciso compreender essa lógica, dialogar e trabalhar junto com eles”, explica Caixeta.

Festa ritual Shodewika, do povo Waiwai, 1955 (Foto: Jeus Yde/ ISA).

Festa ritual Shodewika, do povo Waiwai, 1955 (Foto: Jeus Yde/ISA).

Em 1981, os Waiwai da aldeia Mapuera, na Terra Indígena Trombetas-Mapuera, encontraram os índios Karapawyana habitando as cabeceiras do Igarapé Yukutu e do rio Kikwo. Parte do grupo fugiu do contato e ainda hoje se encontra isolada, outra parte permaneceu sob a influência dos Waiwai. Destes, dois morreram logo após o contato e outros quatro morreram alguns anos depois, em função de epidemias de gripe e malária.

“Nossos mais velhos contam que, no contato dos Waiwai com os Karapawyana, um dos pajés foi derrotado por gripe trazida da cidade, que eles não podiam curar. Muitas vezes eles fazem o contato, mas não estão preparados para isso, o que é muito perigoso”, defende João Batista Waiwai, liderança indígena e chefe da Coordenação Técnica Local (CTL/Funai) de Oriximiná (PA).

Para Fábio Ribeiro, o principal desafio é equacionar todas essas questões, ainda muito latentes. “Como pensar a gestão territorial de terras em que os índios têm uma tradição de estarem articulados numa rede muito antiga, onde ao mesmo tempo há uma atuação proselitista bastante forte há mais de meio século, e num contexto em que a política do Estado voltada para povos isolados é fundamentada no marco do não-contato? Numa eventual aproximação, qual postura vamos assumir? Vamos dizer que eles não podem se encontrar, vamos proibir isso?”, reflete.

Outro grande dilema do trabalho na região é a gestão compartilhada das áreas de fronteira. De acordo com a edição número 07 do Boletim Povos Indígenas e Meio Ambiente, do Instituto de Pesquisa e Formação Indígena (Iepé), vários povos da região, como os Waiwai, Waiãpi, Tiriyó, Wayana e Palikur, tiveram seus territórios tradicionais divididos com a consolidação das fronteiras nacionais, tornando-se habitantes de dois ou mais países.

Entretanto, as posturas e políticas de Estado de cada país são distintas com relação a esses povos, e a interlocução entre os diferentes órgãos ainda é muito incipiente. A legislação do Suriname, por exemplo, até hoje não reconhece o direito coletivo dos povos indígenas à terra. Além disso, o país possui leis que permitem a exploração de recursos naturais em áreas habitadas por comunidades tradicionais, o que expõe ainda mais essas populações aos impactos trazidos por garimpeiros, mineradoras e madeireiras que atuam em seus territórios. Já na Guiana Francesa os índios são considerados cidadãos franceses como qualquer outro, sem diferenciação.

Segundo o coordenador da FPEC, há diversos comunicados à Funai, principalmente vindos dos índios Waiãpi e da antropóloga Dominique Gallois, sobre a presença de isolados nas cabeceiras dos rios Oiapoque e Amapari, e informações de que eles atravessam as fronteiras com Suriname e Guiana Francesa.

“Essa questão é realmente muito complicada. Os isolados hoje vivem como os nossos antepassados viviam. Eles dominam o território, estão acostumados a andar e viver na floresta. Não sabem se estão passando da fronteira ou não. No seu entendimento, tudo que é mata é deles. A fronteira quem colocou foi o branco”, frisa João Waiwai.

Ocupação tradicional reconhecida

Há anos os povos indígenas da região reivindicam a regularização fundiária da Terra Indígena Kaxuyana-Tunayana, contígua às terras Nhamundá-Mapuera e Trombetas-Mapuera. Com apoio de organizações da sociedade civil que possuem atuação histórica na região, como o Iepé e a Comissão Pró-índio de São Paulo (CPI-SP), a Associação Indígena Kaxuyana, Tunayana e Kahyana (AIKATUK) lançou, em 2012, uma campanha de sensibilização e de mobilização em apoio aos povos indígenas e quilombolas da Bacia do rio Trombetas, na região da Calha Norte do Pará.

Com publicação no Diário Oficial da União (DOU), em 20 de outubro de 2015, a TI acaba de ter seus estudos de identificação e delimitação reconhecidos pela presidência da Funai. Com 2,1 milhões de hectares, ela fica localizada nos municípios de Nhamundá (AM), Oriximiná (PA) e Faro (PA), e é habitada tradicionalmente pelos povos indígenas Kaxuyana, Tunayana, Kahyana, Katuena, Mawayana, Tikiyana, Xereu-Hixkaryana e Xereu-Katuena, além de três diferentes grupos indígenas vivendo em isolamento.

De acordo com o Resumo do Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação da Terra Indígena Kaxuyana-Tunayana, muito provavelmente esses isolados são remanescentes daqueles grupos maiores que, na década de 1960, foram deslocados pelos missionários.

A delimitação foi um importante passo para o ordenamento territorial na região. Ao longo dos anos, o não reconhecimento da área possibilitou a criação, em 2006, pelo governo do Pará, de duas Florestas Estaduais em parte sobrepostas às terras de ocupação tradicional indígena: a Floresta Estadual (Flota) Trombetas (com área total de 3,1 milhões de hectares) e a Flota Faro (600 mil hectares). Além delas, existe ainda a comunidade quilombola de Cachoeira Porteira, uma área de aproximadamente 200 mil hectares, dos quais 85 mil estão sobrepostos à área da TI.

Para solucionar esse impasse, foram realizadas reuniões entre os indígenas e quilombolas, junto à Funai, a Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial (SEPIR), a Fundação Cultural Palmares e o Ministério Público Federal. Como resultado, foi pactuado um acordo formal de limites territoriais de forma a permitir a continuidade dos processos de regularização fundiária de ambos os territórios. O acordo prevê ainda o uso compartilhado de algumas pequenas áreas – principalmente locais de roça e caça dos povos indígenas situados no território quilombola, e áreas de castanhais usadas pelos quilombolas no interior da terra indígena.