Por Rafael Nakamura
Após quase nove anos, as comunidades Matsés no Peru e no Brasil saíram vitoriosas da batalha contra um gigante. Trata-se da empresa petrolífera Pacific Stratus Energy S.A, subsidiária da multinacional canadense Pacific Exploration and Production, que detinha os direitos contratuais de exploração de petróleo no Lote 137, no Peru. Vigente desde 2007, o contrato foi rescindido na metade do ano de 2016 sem a Pacific Stratus Energy S.A iniciar o processo de Estudo de Impacto Ambiental (EIA), nem conseguir executar o Programa Mínimo de Trabalho do primeiro período da fase de exploração.
O Lote 137 se sobrepõe a 36% da área da Reserva Nacional Matsés (RNM) e a 49% da Comunidad Nativa Matsés (CNM), do lado peruano. Segundo relatório da Perupetro, agência reguladora estatal peruana encarregada dos contratos de exploração de petróleo e gás, a rescisão do contrato e devolução da área total do lote foi motivada pela posição da Comunidad Nativa Matsés, que durante os últimos anos resistiu ao início das atividades da empresa petrolífera em seu território.
O contrato de licença para exploração de petróleo no Lote 137 termina em um contexto de recuo de investimentos em operações, motivado pela queda do preço do petróleo no mercado internacional. Contudo, foram decisivos para esse desfecho o rechaço contundente e contínuo, e as mobilizações dos Matsés contra esse tipo de atividade em seu território durante quase uma década. Por conta dessa resistência, a Pacific Stratus Energy nunca chegou a iniciar suas atividades de exploração no Lote 137.
As reuniões binacionais promovidas pelos Matsés anualmente desde 2009 se constituíram em um importante espaço de articulação nesse processo, e tiveram como pauta prioritária a preocupação das comunidades com a retomada da exploração petrolífera em seus territórios.
Um histórico de conflito
A resistência indígena à exploração de petróleo nesta região de fronteira vem de longa data. Os primeiros estudos remontam ao final da década de 1930, mas é nas décadas de 1970 e 1980 que a presença de empresas petrolíferas se intensificou na região, com a realização de levantamentos, perfuração de poços e abertura de picadas para prospecção sísmica pela Petrobrás, no lado brasileiro, e pelas companhias Atlantic Richfield Company (ARCO), Servicios de Exploración de Petroleo (Sexpet) e Amoco no Peru. No Brasil as atividades de exploração foram mais intensas nas bacias dos rios Jaquirana, Itaquaí, Jandiatuba e Jutaí.
No Jaquirana, a atuação da “Companhia” (que é como os Matsés mais velhos se referem à Petrobrás) se deu no contexto de contato de alguns grupos que até então viviam em isolamento, e há relatos da abertura de picadas para a prospecção sísmica atravessando roçados de aldeias. A intensa movimentação de pessoal e maquinário provocou o abandono de malocas e roçados, movimentações constantes e a contração de doenças, trauma recordado até hoje pelos mais velhos.
No Itaquaí, Jandiatuba e Jutaí as operações exploratórias se deram em algumas das áreas de maior concentração de malocas de isolados então conhecidas. Houve sucessivos conflitos, resultando em trabalhadores flechados e na morte de um funcionário da Companhia Brasileira de Geofísica a serviço da Petrobrás e de um indigenista da Funai que acompanhava as operações exploratórias. Há registros de malocas queimadas e abandonadas e também da morte de indígenas.
A atuação desastrosa da Petrobrás foi finalmente interrompida em 1984, e esta região de fronteira permaneceu livre da exploração petrolífera ao longo da década de 1990 e início da década de 2000.
O boom das concessões no Peru
Na segunda metade da década de 2000 houve uma retomada de explorações na região do Vale do Javari, promovida pela política desenvolvimentista do governo peruano de Alan Garcia. Entre 2006 e 2011, grandes extensões da Amazônia peruana foram concedidas para empresas petroleiras, um dos principais setores responsáveis pelo crescimento econômico do Peru no período.
Se em 2004 as áreas concedidas para exploração e produção petrolífera correspondiam a cerca de 15% da área do bioma amazônico no Peru, em 2009 os lotes abrangiam mais de 70% da superfície do bioma, segundo estudo elaborado por ambientalistas. Boa parte dos lotes incidia sobre Comunidades Nativas e Reservas Territoriales del Estado. Estas últimas são destinadas a povos indígenas isolados, cuja existência chegou a ser negada pelo então presidente do Peru, Alan García.
“Contra o petróleo, criaram a figura do nativo selvagem ‘não contatado’, quer dizer, desconhecido, mas presumível, pelos quais milhões de hectares não devem ser explorados e o petróleo peruano deve permanecer debaixo da terra enquanto se paga no mundo US$ 90 dólares por cada barril”, disse o ex-presidente em entrevista ao jornal peruano El Comercio no dia 28 de outubro de 2007.
O Vale do Javari entrou no mapa da onda de concessões petrolíferas do governo Alan Garcia em meados de 2007, e em 2008 toda a extensão dos rios Jaquirana e Javari encontrava-se loteada para empresas do setor de petróleo e gás, entre contratos para exploração e produção e um convênio de avaliação técnica. Após a entrega e readequações dos limites de alguns lotes em anos seguintes, permaneceram inalterados até meados de 2016 os contratos dos lotes 135 e 137, com a Pacific Stratus.
Reativação de fronteiras exploratórias no Brasil
No Brasil também se verificou uma retomada da agenda de exploração de petróleo e gás na região, embora mais tímida. A Agência Nacional de Petróleo, Gás e Biocombustíveis (ANP) promoveu uma série de estudos a partir de 2007 e ofereceu nove blocos ao sul da Terra Indígena Vale do Javari na 12ª Rodada de Licitações de Petróleo e Gás da ANP, em 2013. O leilão foi marcado por irregularidades e teve seus efeitos suspendidos por uma série de liminares, a última delas relacionada ao contrato do Bloco AC-T-8, ao sul da TI Vale do Javari, licitado para a Petrobrás. A decisão liminar foi concedida pela Justiça Federal em Cruzeiro do Sul (AC), que acolheu os pedidos do Ministério Público Federal em ação civil pública movida contra a União, IBAMA, ANP e Petrobrás pelas graves ilegalidades do ponto de vista social e ambiental desde o princípio do processo de licitação até a outorga do contrato do bloco.
Diante das iniciativas recentes de promoção da exploração petrolífera no Vale do Javari e seu entorno, os povos indígenas da região têm clamado para que autoridades do Ministério Público Federal, da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e outros organismos nacionais e internacionais intercedam junto aos governos brasileiro e peruano para a paralisação de qualquer atividade petroleira próximo às suas terras, em especial próximo a áreas habitadas por índios isolados.
Ameaça a isolados
Se a rescisão do contrato do Lote 137 é uma vitória a ser comemorada pelos Matsés e demais povos indígenas do Vale do Javari, outro lote concedido para a mesma Pacific Stratus segue ameaçando seus territórios. O Lote 135 se sobrepõe em quase sua totalidade à Proposta de Reserva Indígena Yavarí Tapiche, encaminhada ao governo peruano em 2003 pela Asociación Interétnica de Desarrollo de la Selva Peruana (Aidesep) para proteção dos povos indígenas isolados que habitam a área. O Lote se encontra em fase de exploração, quando são realizados estudos para determinar a viabilidade de produção de petróleo e/ou gás na área.
Em novembro de 2012, a Pacific Stratus iniciou trabalhos de levantamento sísmico na área do Lote 135. Em mapa produzido pela empresa estava prevista a abertura de 789 km de picadas para levantamentos sísmicos, e de 134 clareiras para pouso de helicópteros com uma área de 60mx40m (2400 m²) cada, promovendo a circulação de um número de trabalhadores que poderia chegar a mais de 500 em seis meses.
No Peru, diversas fontes mencionam a existência de isolados nas bacias dos rios Jaquirana, Javari e Tapiche. Depoimentos coletados junto ao povo Matsés para um estudo de avaliação desta proposta, realizado pelo então Instituto Nacional de Desarrollo de los Pueblos Andinos, Amazónicos y Afroperuanos (Indepa), deixam clara a ocorrência de avistamentos e vestígios da presença de isolados por moradores das aldeias Buenas Lomas Nueva e Puerto Alegre, ambas no lado peruano da bacia do rio Jaquirana. Apesar destas informações, o Estado peruano tem seguido a política de concessões florestais madeireiras e a manutenção dos direitos de exploração para empresas petroleiras nas áreas em questão.
Segundo nota técnica elaborada pelo Centro de Trabalho Indigenista sobre a presença de isolados no alto Jaquirana, constam ainda informações sobre a ocupação contemporânea da região da bacia do rio Batã (um dos formadores do Jaquirana) e cabeceiras de afluentes do rio Jaquirana e Curuçá por índios isolados. No lado brasileiro desta área de fronteira, a Funai realizou pelo menos duas expedições em anos recentes. Os Matsés têm demandado ao órgão indigenista que oficialize as informações que foram levantadas até o momento sobre a presença de isolados na bacia do Jaquirana a órgãos de Estado do Peru e que dialogue com o governo peruano para a proteção destes povos e para o atendimento das demais reivindicações prioritárias debatidas em seus encontros binacionais.
Passados treze anos desde a primeira demanda para a sua criação, o processo de reconhecimento e categorização da Proposta de Reserva Indígena Tapiche, Blanco, Yaquerana, Chobayacu y Afluentes (Yavarí-Tapiche) ainda encontra-se indefinido, assim como duas outras propostas de Reserva Indígena para isolados na região: Sierra del Divisor Occidental (Kapanahua) e Yavarí Mirim. As três propostas contam com qualificação favorável do Vice Ministério de Interculturalidade do Peru para o seu reconhecimento e atualmente são objeto de estudos em curso por parte do deste órgão, responsável por coordenar a política de proteção aos povos indígenas isolados e de recente contato naquele país.
Além do Lote 135, a proposta de Reserva Indígena Yavarí-Tapiche é extensamente sobreposta pelo recém criado Parque Nacional Sierra del Divisor. Apesar de ser a categoria de Área Natural Protegida de maior proteção na legislação ambiental do Peru, em seu processo de categorização o Serviço Nacional de Áreas Naturais Protegidas pelo Estado (Sernanp) desconsiderou a existência de isolados na área do Parque que afetam esta proposta (e se deu o mesmo com relação à área de sobreposição à proposta de RI Kapanahua), o que tem sido denunciado por organizações indígenas. A criação do PN Sierra del Divisor tampouco representou maior proteção para a área sobreposta pelo Lote 135, já que o contrato com a Pacific Stratus é considerado pelo Estado peruano um “direito previamente adquirido” por ter sido firmado em 20 de novembro de 2007, época em que a área ainda era uma Zona Reservada e o processo de categorização como Parque Nacional estava em curso.
Por conta disso, lideranças e organizações indígenas defendem que, ante indícios da existência de isolados dentro de uma área candidata a Área Natural Protegida, devem ser previstas medidas cautelares no processo de categorização. Como, por exemplo, a delimitação de suas zonas de ocupação como áreas de proteção estrita independentemente da etapa em que se encontre o processo de reconhecimento dos povos isolados e das respectivas reservas indígenas em questão.
Do outro lado da fronteira, além do Vale do Javari
A situação enfrentada pelos povos indígenas do Vale do Javari não é uma exceção na Amazônia peruana. Em outras regiões do bioma a atuação de petroleiras em territórios indígenas também é motivo de muita controvérsia e há décadas tem causado danos sociais e ambientais ainda mais graves. As empresas Petróleos del Perú (Petroperu) e Occidental Petroleum (Oxy) exploraram o território do povo Achuar de 1971 até 2000 e recentemente foi condenada na corte estadunidense a pagar compensações a cinco comunidades Achuar. No ano de 2000 o bloco foi assumido pela empresa argentina Pluspetrol, que continua violando os direitos dos povos indígenas e os padrões internacionais para exercer atividades de exploração. Desta vez, junto aos Achuar estão os povos Quéchua e Urarina processando a Pluspetrol.
Os efeitos devastadores das atividades de exploração e produção causaram diversas mortes prematuras entre os indígenas, graves problemas genéticos, além da degradação ambiental. A contaminação atingiu as águas de uso das comunidades Achuar, nas quais a companhia despejou metais pesados como cádmio, chumbo e arsênico, segundo reportagem da Amazon Watch. Em 2006, um estudo do Ministério da Saúde do Peru concluiu que quase todas as pessoas que fizeram o teste nas comunidades Achuar possuíam níveis de cádmio acima do aceitável.
Já no período Alan García, em 2009, os projetos da anglo-francesa Perenco e da espanhola Repsol- YPF que afetariam os isolados na região do Lote 67, norte da Amazônia peruana, foram também motivo de protestos dos povos que habitam a região próxima ao departamento de Loreto. Durante várias semanas o rio Napo foi bloqueado pelas comunidades dos povos Secoya e Quéchua. Os barcos da Perenco só conseguiram passar com a chegada da Marinha de Guerra.
A Perenco havia recebido luz verde para começar a atuar no Lote 67 apenas 13 dias depois do episódio que ficou conhecido como Massacre de Bagua. Nos dias 5 e 6 de junho de 2009, manifestantes, na maioria dos povos Awajun e Wamba, foram violentamente reprimidos pela polícia nacional do Peru em um conflito que resultou em dezenas de indígenas mortos e desaparecidos, mais de 20 policiais mortos, além de centenas de feridos e detidos. A repressão pôs fim a uma jornada de protestos iniciada no ano anterior contra reformas na legislação propostas pelo governo de Alan García para fomentar a exploração de recursos naturais na Amazônia, que violavam direitos assegurados aos povos indígenas no Peru.
Passados alguns anos, em fevereiro de 2016 o Peru declarou estado de emergência em 16 comunidades da floresta amazônica devido a vazamentos de petróleo na região de Loreto. Só neste ano, até o mês de agosto, foram cinco vazamentos. Germán Velásquez, presidente da petroleira estatal do país, a Petroperu, renunciou ao cargo em junho deste ano, mas os vazamentos continuaram.
Um futuro incerto
Os impactos negativos da exploração petrolífera marcaram profundamente a história recente dos povos indígenas do Vale do Javari. Diante da retomada de atividades exploratórias no Brasil e Peru nos últimos anos e da reedição de conflitos, eles têm se mobilizado para que a história não se repita nas presentes e futuras gerações. O fim do contrato do Lote 137 é uma vitória importante nesse contexto, e um exemplo de resistência indígena. Que ela seja sucedida pela rescisão do contrato ainda vigente do Lote 135 e pela conclusão dos processos de reconhecimento e regularização de territórios de índios isolados que tramitam há mais de dez anos em órgãos de Estado peruanos.