Crianças na aldeia Kawêrêtxikô 2016 (Foto: Daniela Lima)

O sonho do retorno e do (re)encontro

Por Daniela Batista de Lima

Pouco tempo após a transferência dos Tapayuna para o PIX, uma carta escrita por Thomaz de Aquino ensejou a realização de uma expedição chefiada pelo sertanista Antônio de Souza Campinas, juntamente com uma liderança tapayuna de nome Tariri. A referida carta, citada por Campinas (1971), informa ter permanecido Tapayuna no território tradicional, notadamente em uma localidade denominada de “Estrada da Baiana”. A expedição ocorreu em condições improprias, sem o apoio logístico necessário para sua boa consecução e para a obtenção dos resultados esperados, ou seja: encontrar outros Tapayuna. Antônio Campinas e Tariri não dispunham de motor de popa, tendo remado por um longo trajeto pelo rio Arinos. Além disso, tendo em vista seu objetivo, a expedição deveria ter percorrido toda a extensão da “Reserva Indígena Tapayuna” (RIT). Isso não ocorreu, deduzo, por conta de uma equipe reduzida a apenas duas pessoas, pelo tempo de execução, pela escassez de recursos materiais, pela ausência de um intérprete que permitisse um diálogo mais fluido e mutuamente compreensível entre Tariri e Campinas, entre outros fatores. “Então, tomei uma decisão de pegar o avião que faz linha para Gleba Arinos…no retorno, voltar de caminhão particular passado pela Bôca da Mata, lugar denominado “Baiana” e ficar nus dias no local. Local este onde a mencionada carta do Padre Tomaz, desatualizada carta, onde referia ter informações de existência de índios remanescentes Tapaiuna ou Beiço de Pau” (Campinas, 1971).

Além dos empecilhos supracitados, houve, possivelmente, um equívoco de interpretação do sertanista com relação ao local apontada por Thomaz, o que, certamente, também influenciou nos resultados da expedição. A “Estrada da Baiana” é a atual MT 338, que corta a cidade de Itanhangá, município limítrofe, a leste, da Reserva Tapayuna. A estrada está fora do perímetro da reserva e o rio Arinos divide o município de Itanhangá da RIT. Segundo pesquisas recentes realizadas in loco pela Funai (Amorim e Katukina, 2017), há outra “Estrada da Baiana”, parcialmente localizada dentro do perímetro da terra tapayuna, na margem esquerda do Arinos. É possível depreender, de acordo com o relatório de Campinas (1971), que era essa localidade a que o padre se referia e onde estariam os Tapayuna. “Resumo, não consegui o motor de popa, assim como, também não encontrei vestígios e nem notícias da existência de índios nos lugares denominado “Baiana” e “Boca da Mata”, na estrada que vai a Gleba Arinos. Digo desatualizada carta do Padre Tomaz de Aquino Lisbôa, pois para chegar nos lugares denominado “Baiana” e “Boca da Mata”, na estrada que vai para Gleba Arinos, tem que ir pela estrada Cuiabá-Santarém, descendo pela margem direita do rio Arinos, e não pela margem esquerda como escreveu o Padre Tomaz, ficando assim, aproximadamente 200 kms fora da Reserva” (Campinas, 1971).

O avanço da ocupação não indígena no território tapayuna pode ter provocado o deslocamento dos grupos que pretendiam se manter arredios aos brancos. Em que pese os registros contundentes sobre a presença dos Tapayuna na margem esquerda do Arinos, com aldeias localizadas, especialmente, nos córregos Tomé de França, Miguel de Castro e Parecis, há registros, do período do contato, que os localizam também na margem direita do Arinos. Um desses documentos, datado de 1963³, informa sobre a presença dos Tapayuna em local denominado, à época, gleba Itanhangá, onde, decerto, atualmente, é o município homônimo. “Beiços de Pau. Houve encontros neste ano entre estes índios e civilizados no lado direito do Arinos, alguns hostis. Parecem “atacar” mais para saquear do que para matar. Informam os moradores do sítio da “Baiana”, da gleba Itanhangá e antigo Arthur Borges. Nesta última propriedade foram corridos seringueiros das feitorias”. A partir dessas informações, é possível inferir que a presença dos Tapayuna se justificaria em ambos os locais, tanto na “Estrada da Baiana” à direita do Arinos, mencionada na carta de Campinas (1971), quanto naquela situada à esquerda do mesmo rio, com uma parte de sua extensão dentro da RIT.

No decorrer da expedição, Campinas (1971) verificou a existência de três aldeias abandonadas no rio Parecis (ou Alegre), uma das quais estava queimada e havia sido plantado capim gordura, provavelmente uma ação propositada dos agentes interessados em camuflar a presença indígena no local. Nestas aldeias foram encontrados cadáveres insepultos, artesanatos e outros adornos. “Voltamos para as margens do rio Alegre e desta vez nós só passamos por três aldeias, duas estavam em pé e a outra estava queimada e no local da aldeia está cheia de Capim Gordura, não sei como Capim Gordura veio esbarrar ali, nas duas anteriores, digo aldeias uma das quais tinha cadáveres, isto é, ossos de vários cadáveres de índios Tapaiunas e muitos artesanatos assim como, arcos e flechas e outros adornos (Campinas, 1971)”.

Durante a expedição, Campinas (1971) encontrou sinais de sobreviventes, porém, a presença de redes de dormir o fez atribuir os vestígios a outros povos, alegando que não era hábito dos Tapayuna utilizá-las. A conclusão do sertanista foi precipitada, uma vez que ele estava em pleno território tapayuna e estava ciente da provável existência de outros sobreviventes. Seria necessária a consecução de pesquisas mais aprofundadas para uma análise conclusiva sobre os resquícios. Ele não aventou a possibilidade de a rede ter sido adquirida de outros povos indígenas ou mesmo dos não índios, com quem os Tapayuna já haviam tido contato e estabelecido intercambio de bens. “Descemos mais uma vez o rio Arinos até perto da Fazenda Iporanga, e fizemos mais uma penetração e encontramos novamente vestígios velhos perto da cabeceira de um córrego que fica pra baixo da Iporanga, vestígios esses bem como, lugares de fogo, pequenas casinhas e estes índios usam redes, quando os Beiço de Pau não usavam mas também retornaram ao rio do Sangue” (Campinas, 1971).

Campinas (1971) finaliza seu relatório declarando não haver mais sobreviventes tapayuna na região do Arinos. “Digo e afirmo, índio Tapauina ou Beiço de Pau, não existe mais dentro da Reserva criada para eles, pois apesar da dificuldade, cumpri as ordens (…) Pois bem, como já escrevi, dentro da Reserva já nas águas do Rio do Sangue, até mesmo nas águas do rio Arinos, ´índios desconhecidos, fazem colheitas na época do veraneio (…).” (Campinas, 1971). Entretanto, sua conclusão é prematura e controversa, uma vez que no mesmo documento ele afirma a necessidade de percorrer toda a extensão da reserva para a confirmação inequívoca da ausência de Tapayuna na área. “Desinterditar uma Reserva não basta, só se atualizar com informações, uma área desta tem que ser vasculhada em todos os limites, para poder provar com absoluta certeza não só no momento, mais também com o tempo, a existência ou não de índios remanescentes dentro de uma Reserva (Campinas, 1971).

Após a transferência dos Tapayuna para o PIX houve uma forte pressão política dos fazendeiros da região para a anulação do decreto de delimitação da Reserva Indígena Tapayuna, o que ocorreu anos depois, por meio do decreto 77.790 de 9 de junho de 1976. Campinas (1971) menciona o interesse no processo de desinterdição da área do dono da maior propriedade incidente na Reserva Tapayuna, a fazenda Apasa Apolinário (ou ABC) “…procurei entrar em contato com os donos de todas as fazendas vizinhas, sendo que uma das quais o que parece, está sumamente interessada na desinterdição daquela mencionada área dos Tapaiunas ou Beiço de Pau a qual refiro-me é a Fazenda Apasa Apolinário S/A…(Campinas,1971).

O interesse pela anulação formal da terra estava relacionado a um contexto de intensa colonização e ocupação não indígena no estado do Mato Grosso, coincide com um período de efervescência na criação de novos municípios e com o processo de titularização de diversas terras indígenas pelo estado. A concessão do território tapayuna a particulares é evidenciada na denúncia expedida pelo SPI em 1967 (nº 298, de 25/10/1967 apud Relatório Figueiredo) “Os índios “Tapaiuna” conhecidos por Beiço de Pau, ainda não pacificados, com as malocas entre os rios Tomé de França e Miguel de Castro a jusante, ambos afluentes do Rio Arinos. Suas terras estão tituladas ao grupo BRASUL, de São Paulo”. A acusação se aplica a vários outros territórios indígenas do estado “Os índios “Parecis”, “Nambiquara”, “Erigpactsa” (Canoeiros do Juruena), “Arara”, “Gavião” e tribos inteiras ainda não pacificadas ou com contatos intermitentes, ou ainda desconhecidos, estão com seus territórios inteiramente titulados pelo Governo do Estado do Mato Grosso” (id.). A análise desse cenário é fundamental para uma compreensão mais apurada da história de esbulho dos Tapayuna e de vários outros povos indígenas que foram vítimas de desterro e genocídio durante o período da ditatura militar.

Ao retornar para o PIX, Tariri, o tapayuna que acompanhou Campinas, compartilhou informações sobre a expedição. Dentre os ouvintes do seu relato estava o atual cacique Roptyktxi. Ele explica que, segundo depoimento de Tariri, à época, ele e Campinas, ao chegaram na antiga aldeia Kawêrêtxikô, a mais importante e maior de todas, viram que o túmulo de uma pessoa, possivelmente uma liderança por estar enterrado no centro da aldeia, havia sido limpo pouco tempo antes. No mesmo local, viram várias pegadas de gente em volta de um pé de urucum, além de sementes esmagadas. Mais adiante, avistaram rastro de pessoas numa trilha que subia o rio; foram atrás, mas não conseguiram alcançar. Infelizmente, e por razões desconhecidas, esses dados extremamente relevantes foram oficialmente omitidos por Campinas (1971) em seu relatório. Todavia, os Tapayuna mantêm vívida a expectativa de (re)encontrar esses parentes, a quem eles se referem como isolados, e os quais eles acreditam veementemente terem subsistido, não obstante a ausência absoluta e qualquer tipo de proteção do Estado brasileiro.

3. Documento entregue pelo Sr. José Batista Ferreira. Inspetor da 6ª RI no Estado do Mato Grosso. Cuiabá, 12 de julho
de 1963 apud Relatório Figueiredo.

Referências Bibliográficas:
AMORIM FF; KATUKINA, V. Qualificação de informações sobre a presença de povos indígenas isolados no interflúvio dos rios Arinos e Sangue – MT. Fundação Nacional do Índio. Brasília, 2017.

BATISTA DE LIMA, D. “Vamos amansar um branco para pegar as coisas”: elementos da etnohistória Kajkhwakratxi-jê (Tapayuna). Dissertação de Mestrado em Antropologia Social. Brasília: Departamento de Antropologia/UnB, 2012.

LISBÔA, T. A. Os últimos Ivétin (Beiço de Pau). Diário pessoal, 1970. Acervo Operação Amazônia Nativa.

LISBÔA, T. A; CÃNAS. V. Diário da aldeia Pareci. Janeiro a Abril de 1970. Acervo Operação Amazônia Nativa.

RELATÓRIO FIGUEIREDO. Documento entregue pelo Sr. José Batista Ferreira. Inspetor da 6ª RI no Estado do Mato Grosso. Cuiabá, 12 de julho de 1963.

RELATÓRIO FIGUEIREDO. Serviço de Proteção ao Índio, nº 298, de 25/10/1967.

VALENTE, R. Os fuzis e as flechas: história de sangue e resistência indígena na ditadura. 1a ed. São Paulo: Cia das Letras, 2017.

WERDEN, P. V. Manuscrito. “Eles me evangelizaram” 10/08/2008. Acervo Operação Amazônia Nativa.

Documentos Avulsos
PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Brasil. Decreto n. 77.790, de 09/06/76 [extingue a reserva indígena Tapayuna, no município de Diamantino-MT]. DOU, Brasília: DOU, p. 8207-2, 10 jun, 1976. Acervo Instituto Socioambiental (SP)

PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Brasil. Decreto n. 81.307, de 03/02/78 [revoga dispositivos do Dec. n. 77.790, de 09/06/76 referente reserva indígena Tapayuna]. DOU, Brasil: DOU, 1 p. 1978. Acervo Instituto Socioambiental (SP)