Por Daniela Batista de Lima
Os padres Antônio Iasi e Thomaz de Aquino, juntamente com Vicente Canãs e dois ajudantes pareci, ficaram responsáveis por assistir os 41 sobreviventes reunidos em um acampamento no rio Parecis. Os Tapayuna permaneceram neste local por alguns meses até serem transferidos para o Xingu. Em que pese o impacto físico e psicológico pela morte de vários parentes, os sobreviventes ficaram satisfeitos com a organização provida pelos jesuítas na nova aldeia e tentaram se restabelecer coletivamente. Durante todo o tempo em que estiveram no acampamento Parecis, os Tapayuna receberam assistência de saúde dos padres, que também os abasteciam com alimentos. Inicialmente, havia poucas pessoas aptas aos trabalhos na roça e às atividades de caça e coleta, tendo em conta que alguns ainda estavam acometidos pelos sintomas da gripe e a maior parte dos sobreviventes eram crianças, muitas delas órfãs. Conforme destacado no diário de Thomaz de Aquino Lisbôa (1970), dos 41 sobreviventes, 24 eram crianças.
As fotos da Missão Anchieta, bem como os trechos do diário de Thomaz de Aquino e Vicente Canãs (1970), atestam que, não obstante as dificuldades, os Tapayuna começaram a se recuperar gradativamente e a retomar a vida cotidiana. Algumas passagens do depoimento de Ngeiwotxi (coletado por mim durante pesquisa de mestrado, em 2011), uma senhora tapayuna que era adulta na época do contato e sobreviveu as tragédias desse período, corroboram a intenção e o esforço dos Tapayuna em se reconstituírem novamente como um coletivo em seu território tradicional. “Nossa, agora vamos morar aqui junto com branco. De agora em diante eles vão cuidar da gente. Eles fizeram aldeia boa para nós, construíram casas, então agora eles vão cuidar da gente. À tarde, a gente começou a comemorar mesmo. Dançamos e brincamos durante esses dias.”
(apud Batista de Lima, 2012: 100- 101).
Essas pessoas decidiram voluntariamente serem assistidas pelos padres, pois supunham que essa era a única alternativa de garantir sua sobrevivência e a das crianças, com as quais eles manifestavam maior preocupação. De fato, a capitulação dos Tapayuna aos cuidados dos brancos foi o que lhes permitiu, ao menos circunstancialmente, a reversão do cenário nefasto em que se encontraram. Certamente, esse foi o momento em que eles estabeleceram uma relação mais próxima e contínua com os não índios. Em contrapartida, outros Tapayuna parecem ter optado por um destino diferente. É o que demonstra trecho do relatório de Campinas (1971), que descreve o avistamento de vestígios de outros sobreviventes, para além do grupo que se encontrava sob a assistência dos jesuítas, e os quais, segundo uma liderança tapayuna de nome Tariri, já haviam sido convidados a se integrarem a eles no acampamento Parecis, mas recusaram. “O Padre Tomaz mandou um rapaz que davam o nome de irmão Vicente, ir na aldeia com um índio, mais antes de chegar encontraram flechas quebradas, então o índio Tapaiuna disse, vamos Vicente esta é minha gente e o senhor Vicente disse que estava com fome e dali voltaram… Tariri disse que esses índios que ficaram para trás naquela época, foram convidados pelos seus patrícios a viverem, digo a virem se integrarem junto ao branco ou seja Padre Tomaz com finalidade de tomar remédios, mais eles não quiseram aceitar a proposta…” Campinas (1971).
Os Tapayuna e os padres estavam cientes sobre a probabilidade de haver outros sobreviventes dispersos pelo território. As aldeias estavam localizadas em uma extensa área, a qual, decerto, não foi completamente percorrida pelos jesuítas. Em razão da vastidão da área e do número de aldeias, é possível que elas tenham sido afetadas de diferentes maneiras pelas frentes de contato, cujas expedições ocorreram de maneira esporádica e irregular. Os grupos que ainda estavam dispersos possivelmente haviam fugido das doenças e/ou decidido se manter hostis à aproximação com os brancos.
Paralelamente ao processo de recuperação e reestabelecimento dos Tapayuna na aldeia Parecis, ocorreram articulações entre a Prelazia de Diamantino, a Fundação Nacional do Índio e os administradores do Parque Indígena do Xingu (PIX) para a transferência dos 41 sobreviventes para o PIX. Essa decisão foi tomada à revelia dos Tapayuna e posteriormente comunicada a eles. O depoimento de Ngejwotxi atesta o pleno desconhecimento dos Tapayuna sobre as deliberações que estavam sendo tomadas em Brasília e sobre a expectativa do grupo em permanecer no território tradicional. “Depois de ano, os homens estavam querendo fazer a roça. O padre Tahati² falou ‘não, vocês não vão mais fazer a roça’. ‘Por quê?’ ‘Vocês já têm muitas plantas na roça’… A gente não estava sabendo sobre a saída para o Xingu” (Ngejwotxi apud Batista de Lima, 2012: 113).
A forma utilizada para persuadir os Tapayuna a se mudarem para o PIX foi a gravação de músicas kĩsêdjê, um povo com várias semelhanças culturais e históricas e falantes da mesma língua dos Tapayuna, apenas com diferenças dialetais. Ao ouvirem as músicas, todos os Tapayuna se emocionaram, pois não sabiam quem proferiam os cantos. Deduziram se tratar de outros Tapayuna que teriam se deslocado para longe ou de espíritos dos parentes mortos que teriam reaparecido no Xingu. Os sobreviventes ainda estavam fragilizados com os acontecimentos recentes e com o genocídio que haviam sofrido, a possibilidade de construir novas relações se apresentava como a alternativa ideal e almejada para reversão daquele quadro de escassez de pessoas e para reconstituição da vida coletiva. A princípio, relutaram em seguir para o Xingu, porém a expectativa de rever os parentes ou encontrar outros Tapayuna os impulsionou a seguir viagem. Eles partiram, todavia, acreditando na possiblidade de retorno ao território tradicional. Os Tapayuna não estavam cientes dos impedimentos que enfrentariam para o retorno e dos desdobramentos políticos suscitados pelo seu deslocamento. Outrossim, eles foram impelidos a se deslocar, já que a decisão sobre sua remoção já havia sido tomada por instancias superiores, não lhes restou outra alternativa a não ser se arriscar em um destino duvidoso. Os Tapayuna partiram sem saber o trajeto que percorreriam, quanto tempo levaria, quem iriam encontrar e onde viveriam. Creio que os empecilhos da comunicação no português e o domínio limitado da língua tapayuna pelos padres tenha dificultado, sobremaneira, a plena compreensão dos Tapayuna sobre a situação.
O deslocamento dos Tapayuna para Cuiabá, onde pegaram o avião para o PIX, durou cerca de dez dias. Foi permeado por contratempos e imprevistos. Os jesuítas não contaram com o apoio logístico necessário e sofreram pela escassez de alimentos, pela ausência de transporte e pela dificuldade de assistência aos Tapayuna, os quais, devido as condições adversas, foram, mais uma vez, contaminados pela gripe, que se agravou ao longo do percurso. Eles enfrentaram novamente o risco de serem completamente dizimados.
Os Tapayuna partiram de Cuiabá para o PIX de avião no dia 02 de maio de 1970, debilitados pela doença, incertos do seu destino e impotentes em relação ao seu futuro.
Sua chegada no PIX representa um novo capítulo da sua história. Os eventos supracitados, que caracterizam os processos de genocídio, etnocídio e desterro têm intensas repercussões na vida dos Tapayuna; atualmente, eles lutam para revertê-las por meio da retomada do seu território tradicional e para se restabelecerem como um povo autônomo. Neste horizonte, o cacique tapayuna, Roptyktxi clama para que a Funai interceda pelo seu povo. “Então, Funai, resolve a terra dos tapayuna que vocês próprios indigenistas deixaram para os homens brancos, para os fazendeiros ocuparem. Eu peço para vocês resolverem o problema que vocês criaram para os Tapayuna. Eu vi agora o mapa da minha terra que tinha demarcação, tinha decreto e vocês extinguiram, vocês extinguiram a demarcação, então agora vocês têm que resolver esse trabalho em que vocês falharam. Não fujam da história…” (Cacique Roptyktxi/Tradução Yaiku/10/09/2017).
A remoção dos Tapayuna foi uma ação inconsequente e despropositada. Seu território já havia sido delimitado por meio de decreto; havia a probabilidade de outros grupos estarem dispersos, os 41sobreviventes tinham a expectativa de permanecerem no Arinos e apresentavam o quadro de saúde estável. Sua remoção representou a abertura oficial de seu território à colonização, conforme enfatizado acima pelo cacique Roptyktxi e também por Thomaz de Aquino Lisbôa. “O padre Antônio Iasi Junior, jesuíta, recebeu da FUNAI a incumbência de preparar a remoção dos 41 restantes beiço-de-pau para o parque nacional do Xingu…A história se repete: Os restantes de um povo indígena são removidos de seu habitat para ceder suas terras aos brancos. Enquanto o padre Antônio Iasi tratava do assunto da remoção, Vicente Canãs e eu ficamos com os beiço-de-pau que restaram” (Manuscrito por Pe. Pedro Van Werden 10/08/1970).
2. Os Tapayuna se referiam ao Pe. Antônio Iasi como Tahati e ao Pe. Thomaz de Aquino como Tahahati.
Referências Bibliográficas:
AMORIM FF; KATUKINA, V. Qualificação de informações sobre a presença de povos indígenas isolados no interflúvio dos rios Arinos e Sangue – MT. Fundação Nacional do Índio. Brasília, 2017.
BATISTA DE LIMA, D. “Vamos amansar um branco para pegar as coisas”: elementos da etnohistória Kajkhwakratxi-jê (Tapayuna). Dissertação de Mestrado em Antropologia Social. Brasília: Departamento de Antropologia/UnB, 2012.
LISBÔA, T. A. Os últimos Ivétin (Beiço de Pau). Diário pessoal, 1970. Acervo Operação Amazônia Nativa.
LISBÔA, T. A; CÃNAS. V. Diário da aldeia Pareci. Janeiro a Abril de 1970. Acervo Operação Amazônia Nativa.
RELATÓRIO FIGUEIREDO. Documento entregue pelo Sr. José Batista Ferreira. Inspetor da 6ª RI no Estado do Mato Grosso. Cuiabá, 12 de julho de 1963.
RELATÓRIO FIGUEIREDO. Serviço de Proteção ao Índio, nº 298, de 25/10/1967.
VALENTE, R. Os fuzis e as flechas: história de sangue e resistência indígena na ditadura. 1a ed. São Paulo: Cia das Letras, 2017.
WERDEN, P. V. Manuscrito. “Eles me evangelizaram” 10/08/2008. Acervo Operação Amazônia Nativa.
Documentos Avulsos
PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Brasil. Decreto n. 77.790, de 09/06/76 [extingue a reserva indígena Tapayuna, no município de Diamantino-MT]. DOU, Brasília: DOU, p. 8207-2, 10 jun, 1976. Acervo Instituto Socioambiental (SP)
PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Brasil. Decreto n. 81.307, de 03/02/78 [revoga dispositivos do Dec. n. 77.790, de 09/06/76 referente reserva indígena Tapayuna]. DOU, Brasil: DOU, 1 p. 1978. Acervo Instituto Socioambiental (SP)