Guerreiros Tapayuna 2017 (Foto: Daniela Lima)

Quem são os Tapayuna?

Por Daniela Batista de Lima

Os Tapayuna são um povo jê, mais conhecidos, no período do contato, nas décadas de 1950 e 1960, como “Beiços de Pau” pelo uso do botoque labial. Se autodenominam, contudo, com seu etnônimo próprio: Kajkwakratxi, cuja tradução literal é “os do começo do céu, leste”. Atualmente, sua população soma cerca de 200 indivíduos, considerando os filhos de casamentos com os Mebêngôkre e Kĩsêdjê, com os quais vivem nas terras indígenas Capoto Jarina e Wawi, ambas no estado do Mato Grosso.

O território tradicional tapayuna é entre os rios do Sangue e Arinos, no noroeste do Mato Grosso. Eram vizinhos e guerreavam, sobretudo, com os povos Kayabi, Manoki, Rikbaktsa e Apiaká. O processo de contato com os Tapayuna foi conduzido entre as décadas de 1950 e 1960, especialmente pelos padres jesuítas da Prelazia de Diamantino. Grande parte das incursões foram realizadas nos rios Tomé de França e Miguel de Castro¹, na margem esquerda do Arinos, onde estavam situadas várias aldeias tapayuna na época do contato. Durante as ações, as equipes se depararam com os Tapayuna em diferentes circunstâncias, avistaram vestígios, roças e aldeias. As expedições receberam apoio logístico da empresa Conomali, Colonizadora Noroeste Mato-Grossense, uma das grandes responsáveis por impulsionar a ocupação não indígena no território tapayuna.

A Conomali foi fundada com o apoio e incentivo dos governos estadual e federal, através da promulgação da “Marcha para o Oeste”, do então presidente Getúlio Vargas, que tinha como finalidade a ocupação dos “espaços vazios” no norte e centro oeste brasileiro. A Conomali fundou em 1955, ao norte do território tapayuna, a cidade de Porto dos Gaúchos, antiga Gleba Arinos. A cidade atraiu vários colonos oriundos do sul do país, estimulou a construção de obras de infraestrutura e a criação de novos munícipios. O processo de colonização do território tapayuna foi também impelido pela atividade econômica da extração da borracha. Um dos maiores seringalistas da região era Benedito Bruno, ex-prefeito de Diamantino-MT, cujos seringueiros ligados à sua firma foram incumbidos do envenenamento dos Tapayuna, em 1953, com arsênico no açúcar.

Os conflitos entre os Tapayuna e os não indígenas que invadiam ostensivamente o seu território intensificou-se ao longo da década de 1960, quando ocorreu o segundo envenenamento, desta vez com carne de anta. Ao contrário do primeiro caso, que foi inclusive noticiado em jornal, quase 15 anos após o ocorrido, o segundo episódio não foi veiculado na mídia e, portanto, não é possível precisar o ano nem tampouco os responsáveis. As informações atinentes a este acontecimento são provenientes dos próprios Tapayuna que sobreviveram à ofensiva. Ambos os envenenamentos provocaram várias mortes.

A primeira incursão visando contato com os Tapayuna foi realizada em 1958 e chefiada pelo jesuíta João Evangelista Dornstauder. Ficou sediada no rio Miguel de Castro, em um local por ele denominado de “Acampamento do Caaró”, onde havia uma feitoria do seringalista Benedito Bruno e um rancho da Conomali; ambos os sítios haviam sido atacados pelos Tapayuna. Durante essa expedição, foi encontrada uma roça, na subida do Miguel de Castro, onde foram deixados brindes (Pereira, 1967 apud Batista de Lima, 2012:57).

Anos mais tarde, durante a quarta tentativa de contato, em 1965, o padre Adalberto Pereira localizou, por meio de sobrevoo, duas aldeias tapayuna “uma nas vertentes do córrego do Barrinha, e outra maior nas cabeceiras do Tomé de França, distantes 16 e 18 quilômetros, respectivamente, do rio Arinos. A aldeia do Tomé de França tinha 17 roças grandes” (Pereira, 1967: 221 apud Batista de Lima, 2012:60). No decorrer dessa mesma expedição, seus integrantes, Adalberto Pereira e o iranxe Mauricio Tupsi, foram ambos flechados pelos Tapayuna.

Em 1966, o então chefe do SPI em Cuiabá, Hélio Jorge Bucker, solicitou a interdição das “terras tapayuna entre os córregos Miguel de Castro e Tomé de França, à penetração de elementos estranhos…” (Pereira, 1967: 223 apud Batista de Lima,
2012:62).

Mesmo ciente, desde a década de 1950, sobre os conflitos que se agravavam na região, a Funai assumiu o contato dos Tapayuna somente a partir de 1968, período em que eles passam a ter forte evidencia jornalística. Neste mesmo ano, o órgão indigenista realizou sobrevoo na região e avistou onze aldeias, o que ensejou a publicação do decreto nº 63.368, de 8 de outubro de 1968, que interditou a “Reserva Indígena Tapayuna”.

Em 1969, uma expedição da Funai, chefiada pelo sertanista João Américo Peret, ficou sediada em uma fazenda na beira do rio Arinos. Iniciaram as tentativas de aproximação por meio da distribuição de brindes, uma técnica comum à época adotada pelas frentes de atração. Gradativamente os Tapayuna começaram a se aproximar e frequentar o acampamento; todavia, logo foram contaminados pela gripe de um jornalista, Hedyl Valle Jr, que integrava a expedição. Infelizmente, a Funai não dispunha do aparato necessário para resguardar os indígenas de qualquer tipo de enfermidade, além de não haver profissionais de saúde na equipe. As vacinas não foram adequadamente armazenadas, tornando-as inutilizáveis. Ao invés de o órgão incluir na equipe profissionais aptos para assistência de saúde, em virtude da complexidade e dos riscos, sobretudo epidêmicos, envolvidos em um processo de contato, optaram por dar visibilidade midiática ao “evento”, levando, tão somente, jornalistas. “Não havia nada. Éramos só nós. Não havia um médico na equipe. Só jornalistas. O que podíamos fazer naquela altura? Eu acho que mesmo que o Hedyl conseguisse ter voltado, o mal já estava feito” (Walter Firmo apud Valente, 2017: 55).

O resultado foi uma hecatombe que dizimou quase integralmente a população tapayuna. Logo após a saída da equipe da Funai, começaram as mortes em massa. A partir desse momento, os Tapayuna vivenciaram uma intensa desestruturação social. As famílias se dispersaram tentando fugir da doença e da morte e se depararam com escassez, abandono, perdas e condições absolutamente adversas para sobreviverem. Ao retornar ao local, em visita a uma das aldeias, Américo Peret encontrou cadáveres dizimados pela gripe e crianças mamando no seio de suas mães mortas (Jornal do Brasil de 16/07/1969
apud Batista de Lima, 2012: 73).

Pouco tempo depois, os padres da Prelazia de Diamantino voltaram à região e se defrontaram com um cenário de pós-guerra. Os Tapayuna foram calculados em 400 pessoas pelo antropólogo Anthony Seeger, a partir de genealogias levantadas com aqueles que foram transferidos para o Parque Indígena do Xingu (PIX). A epidemia da gripe os reduziu a 41 indivíduos, reunidos pelos jesuítas Antônio Iasi, Thomaz de Aquino Lisbôa e Vicente Canãs em um acampamento no rio Parecis (ou Alegre), afluente da margem esquerda do Arinos, onde permaneceram por alguns meses antes de serem removidos para o PIX.

1. Nome dos expedicionários que navegaram pelo Arinos em 1812.

 

Referências Bibliográficas:
AMORIM FF; KATUKINA, V. Qualificação de informações sobre a presença de povos indígenas isolados no interflúvio dos rios Arinos e Sangue – MT. Fundação Nacional do Índio. Brasília, 2017.

BATISTA DE LIMA, D. “Vamos amansar um branco para pegar as coisas”: elementos da etnohistória Kajkhwakratxi-jê (Tapayuna). Dissertação de Mestrado em Antropologia Social. Brasília: Departamento de Antropologia/UnB, 2012.

LISBÔA, T. A. Os últimos Ivétin (Beiço de Pau). Diário pessoal, 1970. Acervo Operação Amazônia Nativa.

LISBÔA, T. A; CÃNAS. V. Diário da aldeia Pareci. Janeiro a Abril de 1970. Acervo Operação Amazônia Nativa.

RELATÓRIO FIGUEIREDO. Documento entregue pelo Sr. José Batista Ferreira. Inspetor da 6ª RI no Estado do Mato Grosso. Cuiabá, 12 de julho de 1963.

RELATÓRIO FIGUEIREDO. Serviço de Proteção ao Índio, nº 298, de 25/10/1967.

VALENTE, R. Os fuzis e as flechas: história de sangue e resistência indígena na ditadura. 1a ed. São Paulo: Cia das Letras, 2017.

WERDEN, P. V. Manuscrito. “Eles me evangelizaram” 10/08/2008. Acervo Operação Amazônia Nativa.

Documentos Avulsos
PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Brasil. Decreto n. 77.790, de 09/06/76 [extingue a reserva indígena Tapayuna, no município de Diamantino-MT]. DOU, Brasília: DOU, p. 8207-2, 10 jun, 1976. Acervo Instituto Socioambiental (SP)

PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Brasil. Decreto n. 81.307, de 03/02/78 [revoga dispositivos do Dec. n. 77.790, de 09/06/76 referente reserva indígena Tapayuna]. DOU, Brasil: DOU, 1 p. 1978. Acervo Instituto Socioambiental (SP)